quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Batuque na cozinha

A cozinha era ampla, azulejos antigos, extremamente limpos. Flores azuis e laranjas decoravam alguns dos azulejos e outros eram lisos em um tom claro de laranja, desbotados de tanta limpeza. O fogão, substituía o antigo fogão a lenha do casarão. A pia foi instalada dentro da casa apenas 10 anos atrás e agora ocupava um lugar ao lado da geladeira antiga, nada de vintage, apenas velha mesmo. Sem muitos utensilhos modernos ou fantásticos a decoração era acidental, feita por frutas, carne secando,queijo, rapadura e doce de leite. Colheres de pau, panelas cautelosamente ariadas, amassadas pelo tempo e com os cabos meio frouxos, mas brilhantes!
Chegamos A Mesa. A Mesa, feita pelo dono da casa 40 anos atrás, era muito rústica, desgastada e rodeada por bancos que acompanhavam o estilo. Os bancos incrivelmente comportavam toda uma família que não parava de crescer - exceto pelos bebês que eram acomodados ou nos fartos seios das mães ou sobre a mesa. A mesa era o centro do ambiente e mesmo na alta madrugada tinha sempre alguém sentado sobre esse altar.
Essa mesa é o totem da família. Nascimentos, mortes, brigas, casamentos, acordos, risadas, lágrimas, sussurros, suspiros, de tudo a mesa compartilhava, todos os rituais aconteciam nela. Na mesa a todo momento mais um se sentava e abria seu coração, recebendo em troca um caldo de acalanto, um pão de reconforto, uma colherada fresquinha de doce de recompensa.
A gente dessa família era como toda gente de toda a família. Uns eram exemplares e cheios de deveres, principalmente com as aparências. Outros eram desconectados desse planeta e muito amados nas reuniões de família porque eram carismaticamente loucos. Para outros tudo era amargura, sofrimento e dificuldade, mas sempre eram os mesmos. Para alguns tudo era sem sentido e apareciam de 10 em 10 anos. Outros tinham um segredo tão profundo que todos sabiam.Uns eram pais, outros eternos filhos. Mas todos se encaixavam e todos pertenciam de alguma forma por algum motivo. Todos amavam e recebiam amor, de alguma forma.
A matrona, linda em seus milhões de curvas, no seu olhar aguçado e no sorriso escadaloso, não era boa em respeitar as regras que ela mesma criara: lambia a colher e voltava para o pote, entrava com os pés sujos da terra do quintal, enfiava o dedo no bolo e jogava bola dentro da cozinha com os caçulinhas da família.
Enquanto ela mexia seu caldeirão, fazia sua alquimia, todo o corpo mexia e correspondia a dança daquela bruxaria boa que eram seus pratos. Quando ela batia seus preparos - sempre a mão - todos, principalmente as crianças, adoravam ver os braços dela saculejando junto a batida. Era mais poderoso que qualquer eletrodoméstico.
Ela fumava um paiol na cozinha e o velho se sentava na mesa com outros tantos e vigiava o queijo. A todo momento que alguém cortava uma fatia, muito espertamente o senhor dizia "Você está alejando meu queijo" e cortava mais uma fatia para si, a pretexto de deixar o queijo meticulosamente reto.
Algumas vezes a cozinha virava terreno feminino, inundado de vozes agudíssimas, risos altos e orgásticos e com um cheiro no ar de alho, cuminho e mulher. Elas se juntava, cozinhavam, penteavam umas as outras, contavam cabelos brancos, descascavam o esmalte, falavam dos amores, dos filhos, das vaidades, das verdades e das mentiras. Morriam para descobrir os segredos umas das outras e quase nunca conseguiam segurar os segredos das que estavam ausentes. Era como se fosse o momento de atualização das novidades da família, porque dali da cozinha tudo retumbava pelos corredores e quartos do casarão.
Na hora de lavar a louça e fazer o café o velho regia o santuario. E aos poucos iam se achegando os demais homens da família. Não ajudavam em nada,falavam do futebol, da formula 1, do carro, da dívida, dos negócios deles e dos outros. Contavam das mulheres, dos filhos e do trabalho que davam. estufavam o peito para contar das proezas deles e dos filhos. Não raro pediam conselhos sobre assuntos delicados. Coçavam o saco, cospiam pela porta que dava para o quintal e os estudados olhavam para aquilo e se sentiam mais homens imitando os mais rústicos. Voltavam para suas vidas fortes e orgulhosos dos homens que eram. As vezes voltavam miudinhos e pensativos, pois o velho que era calado, quando falava ou era sabedoria pura ou crítica dura.
Tudo ia acabando com o por do sol de domingo, ficavam ecos pelas paredes e ressoava a solidão da semana no anoitecer. A matrona, rouca de tanto falar e reger cerimônias ia se recolher e jejuar de companhia em seu canto e o velho com sua mente exausta de tentar solucionar a vida alheia ligava seu rádio e ouvia o Om da má sintonização da estação Am de rádio. Era o mantra que sintonizava ele com o vazio e limpava sua mente para a próxima cerimônia.

3 comentários:

  1. Oi Dani, adorei isso. Fiquei tocado com sua imaginação e sutileza nas imagens e nas palavras. Bj Marco Aurélio

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  2. Homenagem a seu querido vovozim!!!! Não esqueço não, muito menos o qual pé de valsa que ele é!

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