segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Vênus do chafariz

  Bem ali, na beira do espelho dágua  do Setor Bancário Sul, lava seus cabelos a Vênus do chafariz. Cantando e sorrindo esta deusa Oxum-Vênus cuida de suas belezas. De short, regata branca colada, cabelos até os ombros, ali às 15 horas ela faz do chafariz seu salon de beauté.   
  Seu trabalho exige este cuidado diário. Como uma Greta Garbo, era necessário cabelos brilhantes, pele macia, sorriso alvo, pernas belas e bem cuidadas. Seu corpo todo coberto de água oxigenada é agora alvo de Hélios, o deus-Sol que beijava seu corpo enquanto a deusa espera seus pelos clarearem – uma preferência racista tipicamente brasileira. A expectativa é de que o corpo seja tomado pelo bronze e os pelos sejam tomados pelo dourado.
  Janelas dos sérios escritórios ao redor se abriam para fitar a deusa. A ridicularização de quem vem com os dedos apontados do alto disfarçam o desejo de fazer como ela; de ser como ela; de estar com ela...
  A deusa enxágua seus cabelos e faz um arco pelo ar com as águas turvas do chafariz. Ignora os narizes tortos, se banha toda bronze-dourada, se mima como qualquer mulher-deusa deve fazer diariamente. Lava suas pequenas peças de roupa, dá ajustes a sua meticulosa sobrancelha. Se veste com as peças que mal secaram e sai orgulhosa, diva, com seu falo altamente destacado,sendo esta o maior atração de seu espetáculo, para os seus clientes afoitos e carentes que estavam por chegar.

  Ela, encantada e encantadora, finaliza seu ritual de beleza. Às 18 horas ela inicia seu turno de trabalho e os clientes – muitos ocupantes dos opressores prédios a sua volta – não se felicitam em esperá-la. Querem dividir com ela seus desejos, sonhos, suas drogas, seus submundos... Coisa que não cabe nas paredes de suas casas, de seus escritórios, ficam para sempre dentro de um armário na escuridão.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Reescrita (perdoe-me Vinícius)

são demais os perigos desta vida para quem tem ilusão

Pra sempre

  “Diga-me se esse pra sempre não te assusta... Me diga? Ia dizendo Alice, enquanto olhava sua convocação para tomar posse como funcionária pública, para seu amigo Lídio. Ela ainda não sabia como dizer sim para as cosias com longa perspectiva de duração. Bichos de estimação: peixes beta; relacionamentos: casuais e só com casais; família: via uma vez a cada 6 meses; emprego: qualquer coisa com temporário no nome; moradia: repúblicas, hotéis... Até as roupas eram de baixa qualidade para não querer ficar tempo demais com nada.
   O ritmo, o jeito e a levada da vida de Alice eram muito longe de um relógio, de um calendário, de qualquer tempo. Era uma vida de agoras e de presente apenas. Se perguntassem de seus planos ela sempre dizia a mesma frase: “não tenho nada pensado, mas deve dar certo qualquer coisa que eu nem sabia que queria”. Nem querer cabia, porque querer criava aflições, planejamentos e nem com isso Alice queria se meter a fazer.
   Lídio olhava a amiga, com quem ele e a esposa andavam se encontrando e achava graça. Ela iria trabalhar no mesmo lugar que ele agora. Ela foi fazer a prova para o concurso por pura loucura, ele havia desafiado ela. A conversa de que “você estará aqui só pelo tempo que quiser” sempre convenceu Lídio, que estava sentando em sua mesa havia 13 anos. Ele, cheio de determinações e planos se formou aos 21, se tornou funcionário público no mesmo ano e casou com uma colega do novo emprego 3 anos depois. Tudo muito acertado, planejado e pra sempre. Mais do que ele mesmo admitia que era.
   Alice no vai e vem dos papeis, andava com essa “família” há uns meses. Sabia que gostava de estar com o casal e criou curiosidade em explorá-los. Ela nunca ficou tanto tempo em uma mesma cidade e muito menos se relacionando com as mesmas pessoas. Há 2 meses já estava morando com o casal que não tinha filhos, mas tinha um quarto vago. Alice dizia todas as manhãs: “bom dia casal, acho que amanhã eu já vou ter me mudado”. A resposta sempre vinha em beijos ou em piadas sobre como ela andava se enganando.
   A hóspede se preparava para entregar todos os documentos. Também já havia decidido que a tarde iria procurar uma república pra morar. Ela entrou pela porta do prédio governamental; viu todos aqueles homens de ternos e gravatas; mulheres altivas e com suas alianças nos dedos. Tudo isso a assustava... Ela quase ia voltando de onde veio, mas sua parceira-casal segurou suas mãos e disse: você só precisa ficar o quanto você quiser...
   Alice precisava se acostumar com a ideia... Adaptação era sua especialidade, mas habituar-se não. Lídio e sua esposa já estavam encaixados com tudo isso. Lídio e sua esposa batiam o ponto, sentavam-se nas mesas, tomavam o lanche da manhã, sentavam de novo, almoçavam, sentavam de novo, lanchavam de novo, sentavam de novo, levantavam, batiam o ponto e iam embora.
Mas havia algo diferente em Alice, que só Lídio percebera e que o fez sentir que Alice teria a sua própria versão de pra sempre. Lídio, sentou-se com sua esposa naquele dia para conversar. Muito calma ela fez a encomenda que a situação pedia e ambos esperaram Alice. Quando ela chegou, eles lhe entregaram a encomenda e ela, chorando, entendeu que o que ela nem sabia que queria havia acontecido. O resultado foi positivo.